EXCLUSIVO: Em meio aos ataques racistas sofrido por Vini Jr, conheça torcida antirracista de clube da LaLiga

Secretário da torcida organizada que luta por causa sociais falou com exclusividade ao Sambafoot sobre a história e a ideologia do coletivo, além do caso do atacante do Real Madrid
2023-05-26 20:52:34

POR THIAGO MORTEIRA (MADRID, ESPANHA), GEOVANNE PEÇANHA (RIO DE JANEIRO, BRASIL) E ANA BITTENCOURT (MADRID, ESPANHA)

O primeiro adversário do Real Madrid, após o lamentável episódio de racismo protagonizado por torcedores do Valencia, no estádio Mastella, contra o brasileiro Vinicius Junior, foi o Rayo Vallecano. Curiosamente, a equipe tem uma torcida organizada antifascistas e antirracistas chamada Los Bukaneros. E o Sambafoot BR entrevistou um dos membros para falar sobre racismo, ideologia e um pouco da história do coletivo que se tornou símbolo na comunidade local.

O QUE VOCÊ PRECISA SABER

> Vini Jr foi ofendido com xingamentos racistas na derrota do Real Madrid para o Valencia, no estádio Mastella, pelos torcedores rivais;

> Esta não foi a primeira vez que isso aconteceu com o brasileiro e, como de costume, o atleta se posicionou de forma firme sobre seus direitos, porém a liga não demonstrou, num primeiro momento, apoio ao atleta;

> A situação causou uma divisão no país sobre os insultos serem racismo ou só “coisas de jogo”, mas novos discursos de ódio foram adotados, como arrancar o rosto de Vinicius Jr de um pôster que fica em frente ao Santiago Bernabéu. O ocorrido tem fomentado discussões dentro e fora do mundo da bola.

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COMBATE AO PRECONCEITO

O Sambafoot BR, através do repórter Thiago Morteira, foi até um bar, chamado La Frasca Taberna, no bairro de Vallecas, em Madrid. Lá, ele conversou com Oscar Herrero, secretário de Los Bukaneros. Entre diversos tópicos, o torcedor do Rayo Vallecano comentou sobre o racismo estrutural que existe na Espanha, as questões políticas que fortalecem o discurso e a ideologia da torcida organizada.

La Frasca Taberna

(Foto: Reprodução)

CONFIRA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA

P: Qual é sua função na torcida organizada do Rayo Vallecano?
R: Sou responsável por fazer o deslocamento das torcidas quando o time joga fora de casa. E também difundimos os valores do time no bairro, não apenas no aspecto esportivo, mas auxiliando em ações sociais como recolhimento de alimentos, compra de máscaras durante a pandemia, etc.

P: Quando começou sua ligação com o Rayo?
R: Começou em 1997 quando estive no estádio pela primeira vez e me apaixonei pelo clube. Não há outra explicação para esse amor, é como uma flechada e desde então tento acompanhar todas as partidas que posso.

Oscar Herrero

Oscar Herrero (Foto: Reprodução)

P: Por que você foi à primeira partida do time?
R: Foi com meu pai e meu irmão mais novo. Ele nos trouxe ao estádio e aproveitamos bastante.

P: Qual sua opinião sobre os episódios ocorridos com Vinicius Jr?
R: Qualquer canto racista não tem nenhum fundamento. E esse caso está tão exposto porque estamos em Madrid. Houve outros episódios de racismo em outros jogos e não deram tanta importância quanto a situação de Vinicius. Porque estamos na capital e o próprio jogador está esgotado e decidiu reagir. Na minha opinião, os cantos racistas não são bons no futebol e não fazem nenhum sentido. É muito triste que um jogador precise passar por isso. No entanto, não vejo solução a curto prazo, pois não temos uma legislação forte sobre o assunto. A Espanha é um país que permite discursos de ódio em partidos políticos, por exemplo, sendo bastante complicado solucionar o problema.

P: Na Espanha o racismo está ligado aos discursos de ódio. Você acha que se os atos estivessem separados e tivéssemos um crime apenas para racismo os casos nos estádios seriam menos graves?
R: Partindo do princípio que há partidos políticos praticando discursos de ódio e eles têm bastante adeptos entre os espanhóis. E não os impedem, lembrando que quem faz as leis são os políticos. E se os políticos podem se permitir esses discursos, porque não os cidadãos? Não se justifica. É fácil compreender que os políticos que promovem o ódio são os mesmos  que tornam esses discursos normais. Então é muito difícil criar dois tipos diferentes de crimes. Teríamos que buscar outra forma de solucionar o problema, sobretudo com educação, educação e mais educação e progredir. Espanha é um país que veio de uma ditadura de muitos anos atrás e não resolvemos nada nesse sentido. E as leis ficaram muito antigas e precisamos dar um passo à frente e seguir combatendo o racismo e o fascismo em todas as suas vertentes. E acabar com esse tipo de conduta.

P: Pensas que esses atos contra Vinicius são provocados por ele mesmo?
R: Não. Não acredito que ele provoque, é um menino jovem que talvez não atue como os jogadores veteranos nesse tipo de caso, mas não é justificável que se cometa esse tipo de ato, por mais que ele provoque. Não tem sentido. Dizem que ele começava a encarar a arquibancada e dizer que seriam rebaixados para a segunda divisão, beijava o escudo. São coisas que se podia desconsiderar apenas para não botar mais lenha na fogueira. Não lhes dando importância não continuariam com esse tipo de insulto racial. Mas ao perceberem que ele fica tão afetado se estabelece uma comunicação com a arquibancada, os fascistas crescem e não há maneira de pará-los.

Em relação ao que falávamos um pouco antes, não apenas joga o Vinicius, há outros jogadores que são negros e não se metem com eles tanto quanto a Vinicius. Além disso, o que contribui para agravar a situação é o fato dele ser uma estrela. Não é justificável seu modo de atuar. Na minha opinião tudo volta ao que falei antes. Está envolvido o Real Madrid, o presidente Florentino, os políticos estão em eleições. Estão todos tentando consertar tudo em dois dias um problema de base que não se pode arrumar dessa forma. Precisa ser feito desde baixo.

P: O Rayo é um clube com torcedores antifascistas e antirracistas. Você sabe como começou esse movimento e por quê?
R:Sim, os torcedores antifascistas e antirracistas que temos em Vallecas começaram como um grupo de amigos. Foram sete os fundadores por volta de 1992. Eles criaram uma torcida organizada e aos poucos foram avançando incluindo mais pessoas no grupo. Acabaram tirando de cena o grupo radical que existia no bairro naquela época, mais ou menos em 1996 ou 1997. Desde então, a causa ganhou mais simpatizantes na arquibancada, pessoas comprometidas com o bairro e com valores muito ligados ao antifascismo e antirracismo.

P:Lembra de alguma vez em que entoaram um cântico antifascista a algum jogador?
R: Eles são conhecidos por todos e tive muitos segmentos da mídia que trataram sobre o episódio de Roman Zozulya e isso foi antes da pandemia, em 2020. O Rayo Vallecano quis contratar um jogador ucraniano, a torcida descobriu pesquisando um pouco sobre a vida do atleta que ele tinha uma clara ideologia nazista. Tinha fotos com Stefan Bandera, marcadores com o 18 na camisa, com um fuzil, coisas que faziam pensar que era um ucraniano nazi. O Rayo o contratou e a torcida se mobilizou e foi protestar contra isso. E conseguimos reverter essa contratação de Zozulya que vinha cedido do Betis. Então todos os jogadores do Betis apoiaram o Zozulya dizendo que ele não era um nazi. O que foi uma imagem dantesca. Por fim, esse jogador acabou no Albacete. Em uma partida que jogamos com eles em Vallecas cantamos “Roman Zozulya é um puto nazi”. O canto foi seguido por muita gente no estádio e não apenas por parte da torcida radical. Resultou em um problema diplomático em escala mundial. A partida foi interrompida e foi a primeira vez que aplicaram um protocolo antirracista em um jogo por chamar “Nazi é um nazi”. A partida foi suspensa, fomos perseguidos pela imprensa, pela embaixada da Ucrânia. Foi uma coisa exagerada. Por fim, as coisas acalmaram e esse jogador é o que é. Foi a única vez que se aplicou um protocolo antirracista na Espanha e o jogo foi parado.

Roman Zozulya

Roman Zozulya (Foto: PATRIK STOLLARZ/AFP via Getty Images)

P: O que você acha dos protocolos da La Liga agora? Eles são brandos ou são exigentes?
R: A partir disso tivemos o conhecimento de que existia esse protocolo. Havia protocolos quando atiravam garrafas no campo e se ativam protocolos também. Mas desconhecemos que existisse protocolo sobre racismo. Desde então ele não foi aplicado mais. No jogo do Valencia, quando o juiz ativou o protocolo não se sabia que ele existia. As pessoas se sentiram chocadas até que o protocolo foi aplicado. Então disseram que o protocolo foi aplicado e as pessoas começaram a insultá-lo. Acho que se deve ser mais taxativo com esses acontecimentos, inclusive os clubes quando veem uma atitude como esta. Não se pode permitir que uma pessoa seja diminuída pela sua cor de pele.

P: Você acha que La Liga é uma liga racista?
R: O presidente da Liga é um político de força nova, um partido fascista. Então, acho que agora eles estão tentando fazer as coisas da melhor maneira, mas estão há tempo sem fazer nada. Há muitos grupos de ultradireita na ala radical que puderam fazer tudo o que queriam todos esses anos. Mas passar de 100 a nada em um dia é impossível. Terão que trabalhar muito mais. Aqui em Vallecas nos sentimos orgulhosos de que racismo e fascismo não existem.

P: Se diz que na Espanha os radicais (ultras) são de direita. Você concorda?
R: No começo, os radicais de direita tinham uma ideologia forte de direita. A Espanha vem de uma ditadura de anos onde os torcedores estavam baseados em políticos que pertenciam a essa ditadura. O presidente do PP, Manuel Fraga, esteve com Franco. Por isso herdamos essa ideologia e os maiores grupos que existiam antigamente eram de direita. Os grupos de esquerda foram ganhando espaço, antes também. Mas estamos tentando que cada vez haja menos grupos de direita e mais com ideologia de esquerda. Que aceitem todas as pessoas como elas são, pois isso é o normal. E deixem essas condutas que não levam a nada e são anacrônicas.

P: Na Europa tivemos alguns regimes fascistas até a Segunda Guerra Mundial, principalmente na Alemanha e na Espanha. Na Espanha foi até um pouco mais tarde até 1977. Você acha que 30 anos mais de ditadura fascista tornou a Espanha um pouco mais racista que o resto do mundo?
R: Bom, a Itália também. Tem clubes que são muito fascistas. Mas, não saberia dizer. Na Espanha existe o racismo não apenas no futebol, mas no transporte público ou em uma manifestação. A polícia tem preconceito contra as pessoas de cor e com imigrantes. O discurso de ódio dos partidos de política está aumentando, é um discurso fácil, pois o governo dá ajuda e nos retiram as ajudas (direitos). O espanhol que se vê em dificuldade econômica diz “Eles dão tudo aos imigrantes e para mim não” e isso se solidifica. Então é o que continuo dizendo, temos que trabalhar nisso e nós das torcidas organizadas, da plataforma RV e a torcida organizada “Bucaneros”, fazemos mil atividades com imigrantes e pessoas menos favorecidas, tudo o que podemos. E sinceramente estamos muito orgulhosos disso. Esse é um bairro multicultural, vai encontrar pessoas de todas as nacionalidades e eles são bem-vindos.

P: Queres deixar alguma mensagem para enviar aos brasileiros?
R: Aqui sempre serão bem-vindos e não mantemos tanto o assunto Vinicius, foram quatro idiotas em Valencia que fizeram isso. Há um problema de racismo no futebol, sobretudo com esses grupos e os brasileiros sempre serão bem recebidos. De fato, Ronaldinho, Ronaldo e milhares de jogadores nunca tiveram problemas aqui. Acho que estão fazendo muito alarde com algo que deve ser resolvido, porque o racismo não é aceitável no esporte. Nem Vinicius, nem outro jogador deve ser discriminado pela cor de pele e etnia voltem a ser vilipendiados dessa maneira.